Lê-se na edição deste mês da revista Ler um brilhante texto de José Eduardo Agualusa, que, encarnando Pessoa, faz uma breve reflexão, em tom sempre metafísico e, não obstante, coloquial, sobre o pensar-sentir pessoano, nas suas possíveis e múltiplas tranversalidades. E se daqui inferimos a intemporalidade humanista patente nas palavras de P, deslumbramo-nos igualmente com a genialidade do autor d'O vendedor de passados.
Ah, o tédio de ser Pessoa. Fui-o por distração, é verdade, como as pedras no seu sossego de pedras, e a erva crescendo e sendo erva, e passarem pássaros neste límpido céu de Verão. Tentei ser muitos para escapar de ser nenhum, e não consegui.
Chama-se alma ao interior oco de uma arma de fogo, que vai da parte anterior da câmara da carga até à boca - ou seja, é por onde sai a bala. A minha alma foi sempre algo assim, um espaço oco por onde disparava os sentimentos com que atingia, ou tentava atingir, o coração dos outros.
Ninguém consegue tornar-se um bom cantor, um bom dançarino, um bom pintor, um bom amante enquanto não se esquece de que está cantando, dançando, pintando ou amando. Entregar-se implica esquecer-se de si. Eu nunca me entreguei por completo à vida. Pensei-a sempre, e pensar demais a vida é não a viver.
Talvez tudo isto lhe pareça contraditório e confuso, e ainda bem. É contraditório e confuso e além disso estou morto. Bastante morto. Não exija coerência a um morto. A um morto exige-se que se decomponha o mais depressa possível, ou seja, que se desorganize. Estar morto é render-se por fim à entropia, desistir. Ah, como sabe bem desistir! Ao longo da vida preparei-me muito para a morte. Fui um campeão em desistência. Comecei, bastante jovem, por desistir do amor e da aventura; desisti das mulheres e depois da humanidade inteira (que é o que acontece normalmente aos homens que desistem das mulheres); desisti do dinheiro e da glória; desisti de uma carreira, inclusive a literária. Quando por fim a morte me estendeu a mão foi já sem lastro, sem um pensamento a prender-me, que me deixei ir.
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