quinta-feira, 28 de maio de 2009

A égide científica

A superação da dicotomia ciências naturais/ciências sociais tende a revalorizar os estudos humanísticos. Mas esta revalorização não ocorrerá sem que as humanidades sejam, elas também, profundamente transformadas. O que há nelas de futuro é o terem resistido à superação sujeito/objecto e o terem preferido a compreensão do mundo à manipulação do mundo. Este núcleo genuíno foi, no entanto, envolvido num anel de preocupações mistificatórias (o esoterismo nefelibata e a erudição balofa). O ghetto a que as humanidades se remeteram foi em parte uma estratégia defensiva contra o assédio das ciências sociais, armadas do viés cientista triunfalmente brandido. Mas foi também o produto do esvaziamento que sofreram em face da ocupação do seu espaço pelo modelo cientista. Foi assim nos estudos históricos com a história quantitativa, nos estudos jurídicos com a ciência pura do direito e a dogmática jurídica, nos estudos filológicos, literários e linguísticos com o estruturalismo. Há que recuperar esse núcleo e pô-lo ao serviço de uma reflexão global sobre o mundo. A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente catalisador da progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento.


Boaventura de Sousa Santos in Um discurso sobre as ciências

1 comentário:

André Santos disse...

Vai-me perdoar a invasão em forma de comentário. Passei por este blog por acaso. Contudo, neste texto, senti-me obrigado a escrever umas palavras (não que isso importe para coisa alguma). Serei breve, sem aprofundamentos (não é o espaço para isso), e com todo o devido respeito.

Ponto primeiro. As ciências (sejam elas sociais ou naturais) não manipulam, não podem manipular, pois a ciência não existe: a ciência é - diferença que tem mais que se lhe diga do que possa parecer à primeira vista (A. Meinong quanto à questão ser vs existir). Quem manipula são os homens. Esses, que operam a ciência. E já o disse muito bem Bertrand Russell (filósofo e matemático), quando em resposta a tais críticas escreveu que «as equações não explodem». A ciência, qualquer que seja ela, é uma tentativa de compreender o mundo. Todas as ciências. Os homens podem usá-las para manipulá-lo, sim. Mas só os homens. E "bons" ou "maus" os há em todo o lado.

Outro ponto. Não sejamos ingénuos ao ponto de sugerir e realmente acreditar numa fusão entre ciências sociais e naturais. Aproximação, sim. Sem dúvida. Seria muito conveniente e proveitosa. Mas há incongruências, abusos absurdos e desrespeitosos de um lado e do outro (leia-se Impostures Intellectuelles, de A. Sokal e J. Bricmont), paradoxos fundamentalistas (relativismo vs objectivismo, etc) e vários pontos que inviabilizam uma hipotética fusão. Conhecimento: é o mote. Sugiro conhecimento, tanto de umas quanto de outras. E, com base no que efectivamente se apreende com cada uma, as inclinações naturalmente surgirão.

Último ponto: a pessoa não é autor nem sujeito do mundo. Não digo que seja coisa nenhuma (pois não o é), mas é certamente pouca coisa. Somos tão pequeninos no nosso narcisismo, tão dentro de nós mesmos, que nos cegamos com o nosso próprio brilho. Vejamos umas fotos do Hubble, a ver se perdemos a pompa e o sentido de excelsa importância que nos atribuímos com tanta frequência. O homem é um todo que é parte. E que parte tão pequenina que é.

Felicidades com o seu blog, gostei bastante.

Cumprimentos,
André Santos.